segunda-feira, 21 de julho de 2008

A última evolução

Há poucos milhares de anos, uma mutação genética permitiu o consumo de leite entre pessoas adultas.

A descoberta de uma transformação evolutiva ocorrida na África há apenas 4 000 anos, revelada na semana passada numa pesquisa da Universidade de Maryland, esclarece uma dúvida da ciência e oferece mais uma prova espetacular da acuidade das teorias do naturalista inglês Charles Darwin. O desafio dos pesquisadores, liderados pela geneticista americana Sarah Tishkoff, era descobrir por que entre alguns povos africanos os adultos apresentam boa tolerância ao consumo de leite, o que não acontece com a maior parte da população daquele continente. A capacidade de digerir a lactose, o principal açúcar do leite, vai desaparecendo à medida que cessa a amamentação. Os adultos que podem continuar a tomar leite sem sofrer perturbações gástricas têm uma mutação num gene responsável pela enzima que processa a lactose. Quando o gado foi domesticado pela primeira vez, há 9.000 anos, e as pessoas começaram a consumir seu leite além da carne, a seleção natural favoreceu aqueles com tolerância à lactose.

Uma mutação desse tipo ocorreu entre 5.000 e 6.000 anos atrás entre povos criadores de gado no norte e no centro da Europa. Hoje, quase todos os holandeses e 99% dos suecos têm tolerância ao leite – índices muito maiores que os de outros países da Europa. Na Hungria e na Polônia apenas 35% dos adultos toleram a lactose. Os cientistas de Maryland queriam saber se a mutação da tolerância à lactose entre os europeus, descoberta em 2002, existia entre povos pastoris de outros lugares. Depois de pesquisarem 43 grupos étnicos da Tanzânia, do Quênia e do Sudão, constataram que, nessas populações, a capacidade de digerir o leite é propiciada por três mutações genéticas distintas entre si, e todas diferentes daquela que confere aos europeus a tolerância à lactose.

A descoberta é considerada por arqueólogos, antropólogos e geneticistas uma espetacular evidência de convergência evolutiva. Isso ocorre quando duas ou mais populações adquirem uma mesma característica de forma totalmente independente. Sarah e sua equipe descobriram que a principal das três mutações, encontrada em grupos étnicos do Quênia e da Tanzânia, coincide com evidências arqueológicas de que tribos pastoris habitaram essas regiões entre 2.700 e 6.800 anos atrás. Ao estudarem os genes dos povos africanos incluídos na pesquisa, os cientistas puderam confirmar o que já suspeitavam: as mutações lhes conferiram grandes vantagens na evolução da espécie. Bem alimentados com produtos lácteos, povos como os beja, do Sudão, produzem dez vezes mais descendentes do que populações da mesma região que não possuem o gene mutante que as tornaria tolerantes ao leite.

Darwin, em sua teoria da evolução, explicou que a mutação genética ocorre de forma espontânea e aleatória e pode se espalhar dentro de uma população por meio da reprodução, sem levar em conta se aumenta ou diminui a chance de sobrevivência em um determinado ambiente. O que evita o caos é um processo que o naturalista inglês chamou de seleção natural. Esse processo beneficia a multiplicação, através das gerações, de mutações que aumentem a chance de sobrevivência e de procriação num determinado meio ambiente. Ou seja, o mais bem adaptado terá mais filhos e acabará por transmitir às gerações seguintes sua mudança genética benéfica. Caso a mudança torne o indivíduo menos adaptado ao ambiente, a sobrevivência da espécie ficará ameaçada, pois aqueles que carregam a mutação terão nenhum ou poucos descendentes. A teoria é bem conhecida – mas raras vezes antes foi possível vê-la funcionar de forma tão explícita entre os seres humanos.

Embora seja impossível especificar quais influências ambientais propiciaram vantagens evolutivas aos povos africanos estudados, os cientistas estão convencidos de que a domesticação do gado foi uma delas. Quem tinha a alteração genética podia usar o leite como alimento, beneficiando-se do cálcio e da energia extra da lactose. Em épocas de seca, a água limpa contida no leite matava a sede. Quem não tinha tolerância ao leite, mas tentava hidratar o organismo com ele, arriscava-se a perder ainda mais água devido a diarréias. "No que diz respeito às bases genéticas da tolerância à lactose, as diferenças entre os europeus e essas etnias africanas mostram que, mesmo tendo habitado regiões diferentes do globo, seus ancestrais desenvolveram uma mesma característica", disse a VEJA Sarah Tishkoff, a coordenadora da pesquisa. Algumas populações chegaram a depender quase totalmente dos produtos lácteos. O exemplo mais expressivo é o do povo massai, pastores nômades do Quênia que se alimentam não apenas do leite e da carne, mas também do sangue dos bovinos que criam. Em todas essas populações estudadas pela pesquisa de Maryland, o casamento entre mutação genética e meio ambiente propiciou enormes vantagens competitivas. Como sempre, Charles Darwin tinha razão.

A genética e a lactose

A capacidade de digerir o leite nos adultos depende da mutação em um gene que permite ao organismo absorver os açúcares que o alimento contém. A tolerância varia entre as populações

Não conseguem digerir lactose

65% da população mundial

50% dos brasileiros

99% dos chineses

1% dos suecos

Veja - Edição 1987 . 20 de dezembro de 2006

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